quarta-feira, 8 de junho de 2011

Eu sou as mulheres dos meus sonhos


De repente, mulheres muito esquisitas começaram a aparecer nos meus sonhos. Elas me parecem familiares, como se fossem minhas tias ou como se fossem situações, lugares, luzes que eu conheço, que estão na minha memória. Aliás, parece muito uma coisa de memória, como uma cena de filme, como uma pintura em um quadro, como um trecho de música. E por me intrigarem é que me aprofundei sobre essas mulheres que certamente me dizem respeito, que certamente me formaram e me fazem a mulher que sou hoje. Em um primeiro momento, houve a rejeição do ego (natural quando lida com coisas que não entende), pois são imagens meio caricaturais, meio exageradas, mas talvez elas se apresentem assim para que eu as veja, para que eu me detenha um tanto sobre esta aparição. Para que eu não as ignore mais.

Há tempo, muito tempo venho trabalhando esse feminino em mim. Por vezes, tão tímido. Por outras, tão agressivo e masculino, duro e desconfiado, sem flexibilidade. Em tantos outros momentos, um feminino desprovido de feminino, sem batom, sem salto alto, sem uma saia justa, sem uma cara que revele a sombra mais guardada da mulher ousada, despudorada, a mulher de ninguém, ou a mulher de todos. E penso, então, nas mulheres que me formaram, a começar por minha mãe, com seu feminino tão contido, tão possessivo, tão calado, tão insatisfeito, tão desacreditado. Mas também tão bravo, atravessando portas sem qualquer mapa, sem nenhuma certeza do que estaria ali atrás ou quem ela encontraria. Aceitou a aliança que meu pai pôs no seu dedo, três meses depois de tê-lo conhecido, e se largou da família. Família grande, de 11 irmãos, que se criou sem pai, porque meu avô morreu quando minha mãe tinha 3 anos de idade e minha avó nem tinha chegado aos 40. Minha mãe se casou aos 18 anos, deixou o Nordeste onde nasceu e veio para este lado do mundo ser a encarnação da Maria de Milton Nascimento. Teve (e tem) fé na vida e se algo ela me ensinou, se algo ela cravou em mim foi esta fé que hoje me sustenta. Na medida dela, dona Noêmia sabe das coisas e algumas eu aprendi.

Começou com ela, mas havia outras mulheres na minha infância. Havia minha tia Nair, que ainda está viva, e que tinha mais cara de ser minha mãe do que a minha mãe mesmo. Ela adorava cantar e ficávamos ouvindo discos nas tardes de sábado, naquela casa de muitos quartos da Rua João Alfredo. Eu cantava todas as músicas do Altemar Dutra e de Cascatinha e Inhana, uma dupla que cantava India e cuja voz tocava meu coração. E assim eu exercitava minha vocação para cantora, que um dia até me valeu o primeiro lugar no concurso de calouros de uma festa junina, na AA Portuários. Cantei Sonhar Contigo, do Adilson Ramos, e cheguei em casa mostrando que tinha ganho uns trocados com o meu primeiro lugar. Minha carreira musical terminou aí.
Minha tia também adorava ouvir novelas e ler aqueles romances que vendiam na banca de jornal. Eu, desde cedo, já gostava de escrever. Escrevi uma novela, ou um conto, ou apenas uma história de amor, não lembro. Eu teria uns 9 pra 10 anos de idade e mostrei para minha tia, pois minha mãe não entenderia aquilo. Seria muito para o seu universo sobrecarregado de realidade. A tia achou aquilo o máximo e talvez tenha sido minha primeira leitora e o primeiro estímulo para eu continuar escrevendo até hoje. Minha tia usava um batom vermelho, tinha permanente nos cabelos e era uma sonhadora. É até hoje e a vida cobrou caro os sonhos que teve, mas ela deu conta do jeito que podia.

Tive professoras, também, que me moldaram. Tive uma que era uma peste, a dona Nidja, bonita, ruiva, pele da cor de leite, mas um demônio vermelho em figura de professora. Dava com a régua nos nossos dedos e na panturrilha, deixando a marca vermelha. Mas tive outras mestras que equilibraram esse universo. Tive a Marina, professora de Psicologia ou algo na área, que me deu 10 sobre a minha “leitura” de Adorável Mundo Novo, do Aldous Huxley. E tive também a Marialva, professora de Filosofia, que me aproximou ainda mais do pensar, do livre pensar e atiçou esse gosto que nunca perdi.

E o que dizer daquelas mulheres com quem caminhei (e caminho) de braços dados pelas ruelas e avenidas dessa jornada humana? Algumas amigas, que de tão queridas fazem parte de mim, respiram comigo, ganham por vezes as vestes de minhas mães; em outras, se inocentam como filhas e eu as amo todas. Algumas outras não ficaram como amigas, mas são inesquecíveis como lição, como desassossego que faz a gente caminhar, queira ou não. São tantas que chamei, tantas que me chamaram e lá fomos... Noêmia, com quem tudo começou, Nair, Helen, Gladys, Christina, Heloísa, Izildinha, Isaura, Ivani, Lu, Miriam (tantas Mirians!), Henia, Bajla, Helena (tantas Helenas), Rosa Maria (e outras Rosas) Maria Helena (tantas) Lourdes (a mãe espiritual) Walderez, Ondina Didina, Mãe Sigmin, Rosalina, Roseana, Terezas, bravas Terezas, Carol, Dani (as duas Corés da minha vida), Denises, Danusas (uma delas, a Leão e ela nem sabe!) Liane, Sonia, Verinha, Débora (as duas), Marília Mamá, Adrianas, Thais (as quatro), Patrícia, Bella, Dilzinha, Ionita, as Telmas, Nazareth, Regina (quantas Reginas desde a Altman!), Ester, Iarita, Vânia, Mercedes, Mercedes!, Perola, Wilma, Marcia (são três), Maria Cris, Nancy, Eidi, Tata, Lena, Leny Leila, Lílian, Lea (quanto a letra L me deu!), Mirella, Quel, Neli, Carmen, Marisa, Elis (a eterna) e outras que certamente a memória ainda vai trazer. Mulheres fortes, cada uma a seu jeito, colocando em minhas mãos tijolos preciosos para eu fazer minha construção. Não sei o que prevaleceu desse vento feminino, que ora soprava como brisa do mar, perfumada e úmida; ora soprava como tempestade que logo desaba, sem dar tempo de procurar abrigo. O que prevaleceu? Sabe-se lá! Com elas fiz (e faço) meu caleidoscópio.

Talvez o que eu venha fazendo, ao longo de seis décadas, é amalgamar essas (e tantas) outras mulheres em mim. Mas só agora isso fica mais claro, mais consciente. Chegou a hora de eu me olhar e ampliar a luz sobre elas. Não para vê-las como caricaturas, mas para exaltar esta essência que nem sempre combina com a embalagem, com a cartilha de estar nesse mundo em que a perfeição (seja lá o que isso for) nos é cobrada a cada suspirar.

E me pergunto o que aconteceu para me levar ao deserto de mim mesma e voltar dele com esse buquê de flores cultivadas e outras selvagens. E sei que a experiência marcante, mobilizadora e transformadora foi em Londres, com meu filho, este homem que certamente colocou a coluna mais bela (e autoral) dessa minha construção. Com ele tive que flexibilizar, tive que aprender isso. Aliás, acho que esta é a primeira lição da nossa natureza fêmea: flexibilizar, a partir do próprio corpo, quando ele se amolda para receber uma vida em formação.

E agora, com ele, fui ao limite que rompeu com velhas resistências e as experiências vividas certamente quebraram paredes que um dia foram intransponíveis. Por elas, entendo agora, atravessei para enxergar todas as mulheres em mim. Perdi o medo (e a censura) de me soltar das correntes – códigos, valores, regras, ordens, leis, opiniões, julgamentos – e, ao me colocar em movimento, abri a perspectiva. Como se eu tivesse nos olhos da alma uma grande angular. Ao ritualizar com ele minha adolescência, sendo ele meu xamã, minha criatura e, naquele momento, criador, transpus os umbrais de mim mesma. Ganhei pernas, ganhei ar e me lancei. Do lado de lá encontrei essas mulheres, essas Vera(s) que alinhavaram uma natureza, uma personalidade, uma raridade. Esta unicidade é que ainda não tinha sido glorificada em mim. Pelo contrário. Penso que ao longo da vida enxerguei muito mais o que me invalidava do que o que me valida. E o que me chancela é justamente essa natureza ímpar, sem nem passar pela minha cabeça o mérito ou o desmérito. Apenas a unicidade, a originalidade que cria o mistério do ser.
Assim sou.

Um comentário:

Drizinha disse...

Verinha, simplesmente lindo e tocante!! Escreva mais, sentimos falta.
Bjs
Drizinha